17 de fevereiro: Quarta-feira de Cinzas

Quando o que resta é solidão

Frei Gustavo Medella

O que acontece ao ator quando as cortinas se fecham e as luzes do palco se apagam? Para onde vai o palhaço depois que deixa o picadeiro, desfaz a maquiagem e tira a fantasia larga e colorida? Termina o espetáculo, começa a solidão. Não é mais hora de representar ou de estar preocupado em arrancar risos ou lágrimas da plateia. Ninguém mais os vê. Agora é cada um diante de si e ambos diante de Deus.

Iniciar o tempo da Quaresma é retirar-se do palco da vida. É colocar-se à sós e responder com a honestidade de quem não consegue se enganar – embora às vezes possa desejar – as perguntas que teimosamente rondam o coração humano. Na busca de dar estas respostas para si e para Deus, a pessoa percebe que aí não há lugar para performances ou atuações, muito menos a preocupação em receber vaias ou aplausos. Agora, a protagonista do espetáculo é a honestidade sem glosas e nua que acompanhou Adão e Eva ainda na inocência do paraíso. “O ser humano vale pelo que é diante de Deus, e nada mais”, lembrava São Francisco de Assis.

É nesta solidão fundamental, descrita por Jesus, como a privacidade silenciosa do quarto, que o ser humano consegue superar os medos, as inseguranças e os traumas que o afligem para mais uma vez redescobrir-se como filho amado de Deus: À medida que ele consegue desvencilhar-se da necessidade de interpretar determinado papel na busca de ser reconhecido ou respeitado, também se sente mais livre e leve nos relacionamentos com Deus – expresso no exercício da oração, com o próximo – simbolizado na prática da esmola, e consigo mesmo – reapresentado no desafio do jejum.

De fato não passamos de um punhado de pó. Mas foi sobre este resto de cinza que cada um de nós encerra que o Senhor resolveu “apostar as fichas”, derramar o seu amor, depositar todo o seu bem-querer. Quaresma é tempo de conversão. Deixemos cair todas as máscaras! Por mais feios e indignos que nos percebamos, Deus nos ama e deseja contar conosco!

Esmola, jejum e oração intensa

Frei Clarêncio Neotti

Os textos litúrgicos do início da Quaresma sugerem, como ajuda de conversão e como expressão concreta de nosso esforço, a esmola, o jejum e a oração intensa. O jejum se refere em primeiro lugar à boca. Há um pecado capital chamado gula. O jejum não é apenas o contrário da gula, é também um abster-se, propositadamente, de alimentos e bebidas ou coisas que satisfazem o sentido do gosto (cigarro, por exemplo). Quando nos privamos de determinado alimento todos os dias da Quaresma ou em determinados dias (de carne, por exemplo), praticamos a abstinência. O jejum de alimentos recorda a frase dita por Jesus ao demônio, que o tentava pela gula: “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4), uma citação do Antigo Testamento (Dt 8,3). Quaresma é um tempo de alimentar a alma por meio da escuta da Palavra de Deus.

A esmola extingue a avareza. Ela mexe com o nosso bolso. Ela lembra que não somos donos de coisa nenhuma, que tudo pertence a Deus. Que somos uma fraternidade, cujos bens devem ser condivididos. Ela nos recorda de que a criatura apegada às coisas terrenas não consegue alçar-se ao céu. É dando aos necessitados, que recebemos de Deus. Dizia Santo Antônio: “Assim como fechamos instintivamente muitas vezes as pálpebras para conservar límpidos os olhos, também devemos dar esmola com frequência para conservar a beleza da graça de Deus em nós”. A esmola deve refletir essa beleza de graça divina, que está em nós; por isso o carinho com que damos a esmola é mais importante que a soma que desembolsamos. A Quaresma é um tempo especial de partilha do que temos e somos.

A oração se faz com os lábios, sim. Mas se for feita só com os lábios será como a fumaça dos sacrifícios de Caim: não sobe para o alto (Gn 4,5). Nossa oração deve partir do coração e ser participada pelo coração, isto é, pelo nosso ser inteiro. Nossa oração é como música envolvente que acompanha nosso jejum, nossa esmola, nossa abertura aos outros e ao mesmo tempo nosso elevamento a Deus. A Quaresma é um tempo privilegiado de oração.

Penitência: abrir espaço para Deus

Pe. Johan Konings

Matematicamente falando, a Quaresma, tempo dos “quarenta dias”, vai do 1° domingo quaresmal até a 4ª-feira da Semana Santa. O Tríduo Santo já é contado com a Páscoa. Mas, na Idade Média, os domingos foram descontados do tempo penitencial, cujo início foi então antecipado para a Quarta-feira de Cinzas. Mesmo não pertencendo à tradição litúrgica mais antiga, as leituras são muito significativas, pois têm teor diferente daquele dos domingos quaresmais, que acentuam a preparação para o batismo a ser administrado na noite pascal. Em Cinzas, o tema central é mesmo a penitência.

A liturgia insiste na autenticidade da penitência (“rasgar o coração, não apenas as vestes”, 1ª leitura) e no caráter interior do jejum, juntamente com as outras “boas obras”, a esmola e a oração (evangelho). A 2ª leitura (introduzida pela liturgia renovada) proclama o “tempo da reconciliação” com Deus, pregada por Paulo com vistas à iminência da Parusia.

O rito da imposição das cinzas, que quanto à literalidade contradiz um pouco as palavras do evangelho, antigamente era acompanhado da macabra citação de Gn 3,19: “És pó, e ao pó voltarás”; hoje em dia, a fórmula alternativa “Convertei-vos e crede no evangelho” combina melhor com o teor da liturgia. A “mortificação” pode ser um meio para libertar-se dos apegos e da vida superficial, mas não é um fim em si! O fim é a conversão, a volta para Deus, que na 2ª leitura ganha um tom de esperançosa alegria, bem de acordo com o evangelho, que manda usar perfumes para não ostentar o jejum. Conversão é encontro com Deus que se volta para nós (1ª leitura), portanto, uma razão de alegria. Oxalá fosse concebida assim o sacramento da penitência neste “tempo favorável”.

A oração do dia e a das oferendas falam do combate ao vício e do domínio de si. Mas o importante no jejum não é o que nós fazemos, mas a maravilha que Deus opera. Nossa parte é preparar-nos para receber a sua graça. A conversão não é tanto fazer algo quanto deixar-se fazer por Deus (prefácio). Na Quaresma vamos dar maior chance a Deus para agir em nós, refreando os instintos egoístas (todos eles, também os do ter e do dominar), tentando acompanhar aquele que se liberou completamente para, em obediência a Deus, doar-se por nós por amor.

Impondo certas restrições aos nossos impulsos, abrimos em nosso coração mais espaço para Deus e seus filhos. Por isso cabe neste dia a abertura da Campanha da Fraternidade. A melhor penitência é: abrir espaço para Deus e para nossos irmãos.

Fonte: Franciscanos

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