Quarta de Cinzas: “Criai em mim  um coração que seja puro, dá-me de novo um espírito decidido”

Criai em mim  um coração que seja puro, dá-me de novo um espírito decidido (Sl 50)

Quaresma, quarenta dias de retiro, de reflexão, de retomada de nosso desejo de ser do  Senhor.  Quaresma.  A comunidade dos discípulos de Jesus faz o propósito de renovar-se, de reviver a trajetória do povo de Deus pelo deserto até a terra prometida e a caminhada de Jesus até a manhã da Páscoa. Quarenta dias que preparam o coração para uma vivência plena, no tempo que passa, da vida nova em Cristo Jesus.  Sim, dias de retiro e de revisão de vida. Vamos começar tudo de novo.

Tudo recomeça com a imposição das cinzas. Cinzas, poeira, insignificância, fragilidade. Não somos donos do mundo. Somos seres  carentes e dilacerados e dizemos a todos, por meio da cinza na fronte, que temos consciência de nossa fragilidade.  Não nos   revestimos de sacos  como os penitentes do Antigo Testamento, mas mostramos que somos homens e mulheres em estado de conversão.  A  cinza substitui o saco. Ressoa dentro de nós a prece de  São Francisco de Assis: “Senhor, quem sois vós e quem sou eu?  Vós o Altíssimo Senhor do céu e da terra e eu um miserável vermezinho, vosso ínfimo servo”. Somos pó, fragilidade, cinza.

Não é questão de rasgar as vestes. É tempo de rasgar o coração.  De experimentar esse interior dilacerado entre o bem e o mal. Tempo de recolocar com humildade nosso pedido de perdão, expor diante do Senhor a verdade de nós mesmos, sem camuflar, sem aceitar viver de aparências.  Nesse tempo o Senhor nos interroga, como chamou a Adão.  “Onde estás, Adão? Por que te escondes?”. “Onde estás homem, por que te escondes?”  No início da quaresma respondemos ao  Senhor: “Eis-me aqui!”

Paulo nos convida à reconciliação com Deus e os com os irmãos. O apóstolo  diz: “Nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus pois ele diz: No momento favorável, eu te ouvi, e no dia da salvação eu te socorri. É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação”.  A liturgia deste dia nos coloca diante da urgência de reconhecer, sem escrúpulos, dilaceramentos que quebram a harmonia interior.

Nada de praticar a justiça diante dos homens. Nada de ter a pretensão de uma inadequada exposição de obediência à lei.  Tudo será sempre feito com discrição.  Tudo a partir do interior.

Não podemos querer reter tudo para nós. É tempo de misericórdia e de esmola.  Não se trata apenas de dar dinheiro aos miseráveis e comida aos famintos.  Trata-se de deslocar o centro de nós mesmos para os outros.  Há gestos a serem colocados bem perto de nós:  um colega de trabalho deprimido com ideias de suicídio, um parente de trato difícil que está doente, a conta da farmácia de um colega que não tem que saldar seu débito. Tudo feito discretamente.  A mão esquerda não sabendo o que faz a direita.

Quaresma, tempo de rever a qualidade de nossa oração.  Tempo de fazermos muitas perguntas a nós mesmos: Até que ponto somos íntimos do Senhor? Rezamos com os lábios, mas principalmente com o coração?  Temos gosto de estar com o Senhor?  Até que ponto temos o hábito de estar com o Senhor, de modo particular, no quarto, com a porta fechada?

Quaresma tempo de jejum. Sim, tempo de moderação no comer. Tempo de jejuarmos de nós mesmos, de nossas ideias, de nossas pretensões, de ficarmos falando o tempo de nossos êxitos, tempo sem fanfarronice. Não é bom sinal deixar de comer chocolate no tempo da Quaresma para se empanturrar do fruto do cacau no tempo pascal.  Jejum, sinal eloquente, que chama atenção para tantos que não tem o que comer. Jejum, sem cara de sofrimento, com a cabeça perfumada,  como se estivéssemos vivendo uma festa.  Jejum que aponta para um viver  melhor, vivendo com menos. “Todos podemos viver melhor se aprendermos a viver com menos. Manifestamos claramente nossa liberdade interior na medida em que renunciamos ao consumo excessivo”(Irmão Vitor-Antonio, beneditino).

Frei Almir Guimarães

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