À direita da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, os restauradores Raquel Diniz Ferreira e Idésio José Fim Francischetto, juntamente com sua equipe encontraram os vestígios de uma porta lacrada, cujo vão se mantinha encoberto pelo reboco e pintura da parede.
Respaldados pelo IPHAN, e a partir de um cuidadoso processo de pesquisa histórica, que incluiu a prospecção material, com desmanche de paredes construídas no século XX, e a realização de entrevistas com paroquianos tradicionais e famílias antigas do bairro, os especialistas elaboraram um parecer bastante denso sobre as conexões que essa porta teria feito ao longo dos tempos.
Mas antes de chegar ao outro lado da porta, que o tempo já fez perecer pelas mãos do homem, registramos que os responsáveis pela restauração decidiram por deixar fechada a porta, marcando a sua existência apenas pela sinalização do seu vão, para que os frequentadores tenham a noção de um pedaço da história da igreja que só existe no campo da memória e na reconstrução histórica das probabilidades e dos vestígios memoráveis.
Essa porta está no centro de uma antiga discussão sobre a configuração do templo. A questão mais recorrente é se em anexo à capela-mor teria existido a sede da Casa de Misericórdia. Trata-se de mais uma questão nebulosa acerca da trajetória do templo, como aquela referente ao primeiro ou aos primeiros oragos da igrejinha, discutida em capítulos anteriores.
Achiamé et al. (1991) registram que, nos primórdios da sua existência, “a igreja se arruinou e, ao ser reedificada, ainda no século XVII, tornou-se Casa da Misericórdia […], embora outros afirmem que apenas houve uma Irmandade da Misericórdia que lhe ficava anexa” (p. 109).
É provável que o “anexo” a que essa porta levaria não fosse mesmo a Casa da Misericórdia. Ao fazer a biografia de Vitória, Serafim Derenzi aborda a transferência da Misericórdia para a ilha, indicando que tenha sido nos princípios do século XVII:
No último lustro da centúria do povoamento do Espírito Santo, aqueles poucos emigrados que não lograram economizar para a velhice e os pobres índios, nascidos imprevidentes, sofriam as misérias da fome e as mazelas das doenças, que não saram. Só a generosidade, sempre mal distribuída, dos corações compassivos, já não era suficiente. Miguel de Azeredo, capitão-mor, a instância de padre Anchieta (1595) funda a Casa da Caridade, em Vila Velha, onde a decadência do povoado se afina com a penúria dos moradores remanescentes. Teve como residência provisória a igreja do Rosário. Construiu-se depois a Casa da Misericórdia, na Rua Pedro Palácios, diz o informadíssimo Daemon. Mudou-se a instituição ou irmandade da Misericórdia para Vitória: quando e onde são duas incógnitas. Prestou relevantes serviços ao tempo das invasões, socorrendo feridos; nas epidemias, assistindo os doentes e enterrando os mortos. O alvará régio de lº de junho de 1605, de Felipe II, deu-lhe as vantagens da Misericórdia de Lisboa. Teve capela e casas. Construção modesta, quase toda em taipa. A ladeira que lhe guarda o nome terminava junto à igreja, demolida, no governo Jerônimo Monteiro para a construção da Assembleia Legislativa (1995, p. 55).
Com um pouco mais de precisão, falando da visita do imperador Pedro II ao Hospital da Misericórdia, em 1860, Rocha (196o, p. 31) define a data da transferência da irmandade para Vitória, fixando um teto temporal mínimo para a existência da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia na ilha: “Aquela pia instituição teria sido criada ainda no tempo do 1º Donatário da Capitania, em Vila Velha, donde a transladaram, no ano de 1605, para a capela da Misericórdia, em Vitória.”
Em obra concluída no ano de 1879, Daemon (2010, p. 160) fixa, com seu ímpar relato sobre a província do Espírito Santo, o ano de 1606 como o da transferência da instituição de caridade para a ilha de Vitória:
1606 – Institui-se e funda-se nesta capital, no dia 1º de junho, o Hospital da Caridade de Nossa Senhora da Misericórdia. É nesta época que julgamos ter sido transferida para a então Vila de Vitória a Casa de Caridade da Vila do Espírito Santo, junto à atual Capela da Misericórdia existente no largo de Pedro Palácios, a qual fora feita de taipa.
Em referência aos anexos da igrejinha, o IPHAN-ES, em folder para distribuição aos visitantes de fiéis do templo, afirma que “a igreja teve anexos, inclusive um hospital (Casa da Misericórdia) construído em 1595 e posteriormente transferido para Vitória; e um cemitério onde esteve sepultado Vasco Fernandes Coutinho (1591). O cemitério foi removido por volta de 1915”.
Os restauradores da igreja emitiram um parecer sobre a funcionalidade da porta e reconstituíram o que seriam os espaços – pelo menos os mais recentes – aos quais ela dava passagem, por meio de uma pesquisa cuidadosa, conforme já anotamos. Raquel Diniz Ferreira e Idésio José Fim Francischetto reportam que “em 2016, no início dos trabalhos de restauração da Igreja do Rosário, identificaram-se, na parede lateral direita da capela-mor, vestígios de argamassa que demostravam indícios da existência de uma antiga passagem neste local”.
Mesmo considerando informações orais obtidas junto à comunidade e até registros históricos, como uma foto do início do século XX, de que em anexo à igreja teria tido lugar a Casa da Misericórdia, os restauradores mantiveram-se intrigados e aprofundaram a pesquisa, concluindo que “é mais correto considerar que o anexo destacado numa foto seria o consistório, ou seja, um espaço em geral construído junto ao corpo da capela-mor, nas laterais ou no fundo, destinado às reuniões e assembleias dos membros da igreja. Esta nova hipótese está fundamentada na solicitação do Revdo. Vigário João Luiz da Fraga Loureiro para a construção, na igreja Matriz da Vila do Espírito Santo (atual Igreja do Rosário), de um ‘pequeno consistório assobradado’. Tal solicitação, encontra-se descrita no Relatório do Vice-presidente da Província Carlos de Cerqueira Pinto, de 1867. Deste modo, provavelmente, a porta em questão servia de comunicação entre a capela-mor e o consistório”, que teria sido construído no final da década de 1860.
Mas a pesquisa não parou por aqui, após identificar, por meio de documentos oficiais, a origem do uso do anexo construído em fins do século XIX, e acabou por apontar a existência de um outro tipo de espaço anexado à capela-mor do Rosário de Vila Velha: uma pequena gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes e também com imagem de Santa Bernadete. Pelos dados obtidos na pesquisa, a gruta teria existido, pelo menos, entre os anos de 1951 e 1968. De toda sorte, não se obtiveram dados sobre a demolição do que teria sido o consistório.
Reportam os pesquisadores, a partir de entrevistas e resgate de fotografias de fiéis de comunidade: “A estória relatada pelos moradores e frequentadores da Igreja é que neste local existia uma gruta na qual ficavam expostas as imagens de Nossa Senhora de Lourdes e Santa Bernadete. Embora não saibam informar quem mandou construir, quem mandou desmontar a gruta e fechar o vão e, principalmente, em que período isso ocorreu. Sabemos, baseados em fotografias, que em 1951 já existia”.
Para ir mais a fundo na tentativa de identificar com mais precisão o que essa porta conectava à capela-mor, para além do consistório que teria sido erguido em meados do século XIX, os restauradores desmontaram a parede que lacrava a porta e encontraram pintura decorativa de uma paisagem com vegetação e uma cachoeira na parte central”.
As fotografias de época ajudaram os pesquisadores a descrever o cenário da gruta: “Do lado esquerdo, numa área mais elevada, aparece Nossa Senhora de Lourdes e bem mais abaixo, à direita, Santa Bernadete, com hábito escuro, ajoelhada e com os braços abertos em direção a Nossa Senhora. As pedras utilizadas para montagem avançam pelo chão da Igreja que, nesse período, possuía um padrão diferente do atual. O fundo da gruta apresenta uma imitação de pedra que pode ser uma pintura ou um papel de parede”.
Os pesquisadores-restauradores concluíram que: “Após analisarmos todas informações encontradas, é possível afirmar a existência de um vão com 2,80 m de altura e 1,60 m de largura. Foi possível também confirmar que existia uma diferença de nível do piso da capela-mor para o piso do anexo, de mais ou menos 38 cm, o que deve ter obrigado a construção de uma pequena escada dentro do anexo. Não foram encontrados indícios de porta fechando o vão. No que se re fere à gruta, após a retirada de todo material, foi possível comprovar a forma escalonada em que foi construída. O lado esquerdo, local de maior destaque, pois lá ficava Nossa Senhora de Lourdes, era mais alto, possuindo mais ou menos 93 cm de altura, já o lado direito, em que ficava a Santa Bernadete, possuía mais ou menos 42 cm de altura. Para possibilitar uma melhor perspectiva na montagem e como a profundidade do vão-do-largo é de apenas 42 cm foi necessário que as pedras da gruta invadissem uma parte do piso da capela-mor. A representação iconográfica repetiu o padrão utilizado para representação do aparecimento de Nossa Senhora de Lourdes para Bernadete. Podemos concluir também que ocorreram quatro momentos distintos: inicialmente, a abertura da porta para facilitar o acesso ao anexo construído na lateral da Igreja. Posteriormente, a porta foi fechada com tijolinhos maciços, transformando o vão, pelo lado interno, em parede cega. Depois, foi aproveitado o espaço existente para montagem da gruta. E, finalmente, ocorreu o fechamento total do vão”.
O parecer acolhido pela restauração da Igreja do Rosário, que optou por manter fechada a porta, apesar de preservar o vão em destaque na parede, foi o seguinte:
“Considerando-se que o espaço existente no vão-do-largo é estreito e devido a isso a montagem da gruta (parte das pedras) teria que avançar no piso da Igreja, o que limitaria o espaço da capela-mor, considerando que o período da gruta não corresponde ao da pintura decorativa e o processo de restauração busca sempre manter a periodicidade entre os elementos; considerando que a gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes não possui nenhuma fundamentação histórica com a Igreja consagrada a Nossa Senhora do Rosário, considerando que as pinturas decorativas encontradas na parede do fundo – paisagem com cachoeira (atual) e imitação de pedra – não possuem nenhuma relação histórica e estética com a pintura decorativa que está sendo restaurada; somos de parecer que a gruta não deve ser reconstruída, embora ainda esteja na memória da comunidade”.
Além dessa descoberta de uma antiga passagem fechada, que, optou-se por ficar evidenciada no processo de restauro com seu vão destacado na parede, houve a identificação de outros elementos e estruturas do templo que foram suprimidas das paredes e fachadas ao longo dos tempos. Seguem alguns exemplos.
O trabalho arqueológico identificou as marcas de um óculo de 35 centímetros de raio na parede lateral leste da capela-mor. Segundo a arqueóloga Christiane Lopes Machado, “na parte sul da parede, ao alto, observa-se vão circular fechado, correspondendo a um terceiro óculo, além dos dois atualmente existentes nessa parede equidistante aos mesmos. Esse óculo possivelmente teria sido fechado quando da colocação do altar-mor atual, que teria sido de menores dimensões anteriormente”
Na parede lateral leste da nave, a arqueóloga identificou um “vão retangular fechado”, de dimensões aproximadas de 260 cm X 127 cm. “Por estar desalinhado em relação às demais janelas, considerou-se a possibilidade de corresponder ao púlpito, que poderia ter um acesso externo, não sendo observadas marcas de escadas para acesso”.
Na parede interna da capela-mor, lado leste, oposto onde está preservada a marca da porta que daria acesso ao consistório ou gruta (lado oeste), também se identificou “um fechamento em tijolo maciço, aparentemente porta em arco, cortada no topo por janela”, descreve a arqueóloga.