Espírito Santo segundo o Dicionário Franciscano

Sem dúvida alguma espírito é uma das palavras-chaves da espiritualidade franciscana. Sua importância se revela já pelo fato de ocorrer 120 vezes nos escritos do santo. Um aspecto característico do termo – como de toda palavra-chave – é que parece exprimir toda a espiritualidade de Francisco, que se reflete na própria particularidade do termo. A linguagem exprime assim uma profunda intuição do santo a respeito das virtudes: “Quem possui uma não ofende as outras”. (SdVt 6). O motivo profundo de tal unificação interior deverá talvez aparecer claro no final de nosso estudo.

1. Análise textual: a) Deus é Espírito, por isso tudo aquilo que é de Deus (até a eucaristia e as virtudes infusas) só pode ser visto, percebido unicamente por meio do Espírito, como declara Francisco na Adm 1.5; b) como Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade, aparece mais  vezes em contextos trinitários, no qual a obra da salvação é considerada comum às três Pessoas:- é próprio do Espírito ser autor de todo bem  e virtude; c) é por obra sua que Deus fixa morada na alma fiel; d) visto como E. de Nosso Senhor Jesus Cristo que habita os corações, faz com que se reconheça a proveniência de todo bem de Deus, dispõe a viver as suas santas obras, é desejável acima de qualquer outra coisa.

e) Existem expressões características de Francisco “na caridade do espírito”, “em obediência ao Espírito”, “a pobreza do Espírito”, “a vida do Espírito”, “a sabedoria do Espírito”; nelas a atenção é colocada naquele que é a fonte destas e de todas as virtudes e dons; ressaltando-se, portanto, a natureza da graça nestas atitudes; – outras expressões designam assim o servo de Deus e seguidor de Cristo que é, como ele, transformado pela ação divina e gratuita do Espírito, de posse da verdadeira sabedoria e vencedor da sabedoria da carne.

f) Com relação ao estudo e anúncio da Escritura, Francisco adverte quanto ao perigo da “letra” que mata, e que se busque e se siga “o Espírito da letra divina”, que significa também, neste contexto, deixar-se iluminar somente pelo E., que é o seu autor.
g) Várias vezes Francisco declara que as palavras de Cristo são “espírito e vida”, e, assim, também as “suas” palavras ou as dos teólogos; exprime com isso a sua certeza de que todos aqueles que recebem no Espírito a palavra divina são vivificados por Deus.

h) Muitas vezes Francisco lembra o sentido oposto, o “espírito (sabedoria) da carne” e o “Espírito do Senhor”, que distingue os “penitentes” daqueles que “não fazem penitência”.

i) O fruto do Espírito, que deve ser desejado acima de qualquer outra coisa, é a atitude de “adorar a Deus em espírito e verdade”, “com pureza de coração e de mente”, porque Deus é espírito.

_ A palavra “espírito” qualifica outros tantos aspectos da experiência franciscana: Francisco diz que o homem é criado à semelhança de Deus no Espírito, Deus forma os seus eleitos com o espírito de arrependimento: tanto no trabalho, como na pregação e na contemplação deve-se cuidar para não se  extinguir o espírito da santa oração e devoção; deve-se desejar e buscar acima de qualquer coisa o Espírito do Senhor e o seu santo modo de  operar;  na oração, voz e espírito devem estar em consonância; – Todas estas expressões indicam uma relação sobrenatural com Deus.

j) E assim toda vez que aparece a palavra espiritual: amigos, irmãos e irmãs, amor entre irmãos espirituais, é no seu sentido do Espírito que é criador da fraternidade; – advérbio espiritualmente tem o mesmo significado, com mais evidëncia quando aparece contraposto a “viver carnalmente”, e é assim que a Regra deve ser entendida.

l) Francisco, nas suas orações marianas, coloca Maria num contexto trinitário bem
específico e como “esposa do Espírito Santo” mas também como ponto de partida da Igreja na graça das virtudes e dons que o Espírito Santo infunde nos corações; – ressalta a maternidade espiritual mariana na Igreja e na Ordem em relação a Cristo, que todo “fiel” pode gerar por obra do Esposo, o Espírito Santo; e indica como ministro da Ordem o Espírito Santo e como “paráclita”, advogada, Maria, enquanto esposa do mesmo.

2. Síntese doutrinal – De uma ampla análise emergem estes pontos teológicos: a) Francisco teve uma intuição profunda, mística de Deus Trindade como Espírito que dá vida; – b) a vida de Deus, no seio da Trindade, assim como também no mistério da salvação, é interpessoal; – c) e é uma vida sempre presente; – d) e age sempre em íntima união; – e) por causa desta concepção trinitária ocorre que nem sempre se entende bem a qual pessoa Francisco se refere quando usa as palavras Espírito ou Senhor; – f) mas a missão do Espírito aparece fundamental na atuação da vida cristã em sua íntegra; g) para Francisco a fonte única de todo bem, também no homem é somente Deus que, operando em nós, nos torna filhos, esposos, irmãos e mães; h) uma relevância especial é dada a Maria-Igreja em relação ao Espírito; i) entre as virtudes que Francisco considera infusas sobressaem-se como palavras-chaves: penitencia, pobreza, obediência, caridade, vida evangélica apostólica, seguimento de Cristo.

j) Fica claro que se pode atribuir ao Espírito um valor vital-central e unificante na espiritualidade franciscana: que Francisco parece sintetizar com a expressão possuir o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar”; por isso afirma que quem possui uma virtude possui todas, porque é o Espírito do Senhor o inspirador de toda a virtude.

3) Momento histórico e atual – É freqüente o uso desta palavra e adjetivos derivados na história franciscana, principalmente nos momentos de renovação, e,  também na secular discussão acerca da interpretação da Regra. Para os  “espirituais”, como Clareano, a observância espiritual é exatamente a literal; a história se  desenvolveu em torno de duas interpretações: uma escrita, ligada às declarações pontifícias, e a outra que aceita também as dispensas pontifícias; – entre essas duas interpretações se encaixaram, ao longo dos séculos, os vários movimentos de  reforma, em nome de uma leitura simples da Regra, mais como experiência genuína pessoal do que como mentalidade legalística;
e é o horizonte no qual se situam hoje as várias famílias franciscanas.

4) Momentos do Espírito na experiência das origens – É a ação do Espírito que faz dos frades “irmãos espirituais”, unindo-os num laço de amor mais profundo do que o próprio amor materno, pois é ele o “ministro geral da Ordem” e repousa igualmente sobre ricos e pobres, doutos e simples; e conduz os simples e os pequenos, como foi o caso de Francisco, ao conhecimento dos mistérios de Deus, nisto consiste a verdadeira  sabedoria; – é o princípio dinâmico da vida da fraternidade; ele vivifica aqueles que na Palavra de Deus não buscam a “letra” e a autopromoção, mas uma luz para clarear o seu caminho e o dos outros, isto é, as santas obras; os frades devem deixar-se conduzir pela sua ação; – Francisco presta atenção especial à ação do Espírito, vive-a até o total despojamento de si; – a obediência ao Espírito torna os frades humildes, pacientes, alegres nas tribulações, verdadeiros servos de Deus e de todas as criaturas, e transforma o amor humano em ágape.

– No período da conversão, Francisco se deixa instruir pelo Espírito e opta pelas coisas amargas, que lhe são transformadas em doçura, e também Clara aprende dele esta mesma atitude de penitência; Francisco e Clara atribuem diretamente à inspiração divina a sua vocação ao seguimento de Cristo, segundo a forma do Evangelho; Francisco ressalta que só recebe dignamente a salvação e o corpo e sangue do Senhor aquele que o enxerga com os olhos do Espírito, na fé e no Espírito que habita  nos fiéis; a busca do Espírito do Senhor, que é vontade de conversão, é o fundamento da CtFl, e por isso animação interior do Memoriale propositi, e também da  nova Regra da OFS; aquele que acolheu como graça o seguimento de Cristo, e torna-se totalmente disponível à ação do Espírito; e, se torna espiritual”, pronto para refutar o “espírito da carne” e para conformar-se em tudo ao Senhor; e para tratar a si mesmo e aos outros com “discrição”, que é sabedoria e misericórdia; Francisco destaca a necessidade de “renascer”da água e do Espírito”que é anunciada “aos sarracenos”, quando assim o sugerir o Espírito aos seus frades missionários.

– Francisco chama Maria de “esposa do Espírito”, um título novo na tradição mariana; mas aplica este título também às clarissas e a todos os fiéis; por obra do Espírito, Maria é “consagrada”, é “virgem feita igreja”, tabernáculo e palácio do Senhor; e entra numa relação singular com a Trindade; e por isso Francisco, confiando-se ao patrocínio dela, quer imitar-lhe a vontade de acolhida, para  conceber e gerar Cristo em si e nos homens. Assim, também a alma fiel entre em relação esponsal com o Espírito, que, com a sua presença e ação, lhe confere fecundidade e  maternidade espiritual na Igreja e pela Igreja, participante da maternidade de Maria.; dom do Espírito ao mundo é também Francisco que, investido de sua força, se torna salvação, esperança e norma de vida segundo o Espírito, imagem de Cristo; inserido vitalmente no quadro da história da salvação, como ressaltam os hagiógrafos.

Dicionário Franciscano, Espírito Santo, espírito, espiritual – verbete 204-215

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